sábado, 24 de dezembro de 2016

Natal: o que a psicanálise tem a nos dizer ?





Flávio Gonzalez: psicanalista, membro do Conselho Brasileiro de Psicanálise e Psicoterapias, psicólogo, teólogo, mestrando em aconselhamento e autor de diversos livros, entre os quais “Emprego Apoiado – Uma leitura Psicanalítica”.


     O fundador da psicanálise, Sigmund Freud, era assumidamente ateu.  Para ele a religião, como a cultura em geral, representava o mal estar da civilização, uma vez que são instrumentos para repressão e controle de nossas pulsões mais primitivas. Entretanto, ele não deixou de analisar diversos aspectos simbólicos da religião, inclusive casos de possessões demoníacas etc. Outros expoentes da psicanálise, entretanto, eram cristãos não ortodoxos, claro, pois isto seria incompatível com a psicanálise, mas definitivamente não eram ateus, entre os quais destacam-se Bion e, sobretudo, Winnicott, que, em nossa avaliação, foi um dos teóricos que mais longe levou a psicanálise depois de Freud. Winnicott era inglês, de família metodista, e, justamente numa carta a Bion, disse que não estaria disposto a abandonar sua espiritualidade em nome da ciência.  Podemos ainda citar Jung, claro, que, embora tenha se distanciado da psicanálise clássica, partiu dela e explorou de modo talvez mais profundo a dimensão religiosa do ser humano. Em uma de suas mais famosas entrevistas, ao ser questionado sobre se acreditava ou não em Deus, ele respondeu: “eu não preciso acreditar, eu sei”.
O que escrevemos aqui, deixa-se claro, é uma leitura do Natal a partir de ferramentas psicanalíticas, mas sem entrar no mérito teológico ou discutir as crenças e a fé de cada um.  Esta é uma questão de foro íntimo e não nos cabe invadir este território.
     Temos na belíssima imagem do Menino Jesus, nascendo numa pobre estrebaria, cercado de animais e de humildes pastores, embora visitado por reis, uma das mensagens mais poderosas que se poderia abstrair em termos psicanalíticos: em meio à animalidade, em meio à miséria, pode nascer e nasce aquilo que temos de melhor, de mais humano, de mais civilizado. Com efeito, é o divino brotando do animalesco, o sagrado emergindo do profano, o extraordinário que nasce em meio ao ordinário.  Como Buda, representado pela Flor de Lótus, como sendo a perfeição que nasce do charco, da lama, daquilo que mais indiferenciado e sujo existe, mas que guarda em si a potencialidade do belo, do bom, do justo. Assim, o Menino Jesus, Príncipe da Paz, nasce entre os animais e é colocado junto com seu pasto, lugar onde se alimentam.  Mais tarde, ele se fará pão e vinho, alimento dos homens. A mensagem parece nos dizer de seu poder de infundir em nós as grandezas do Alto, a representar as forças latentes de nosso inconsciente que podem nos levar a estágios mais diferenciados e superiores de desenvolvimento.  Alimentando-nos dele, como crianças que somos psiquicamente, nos tornaremos fortes, sábios, equilibrados com nossas forças antagônicas.
     O “inimigo” está dentro de nós.  Mas, esta criança pode nos trazer a paz.  Assim, a beleza na cena de Natal também nos revela esta outra sabedoria: os anjos, os reis, os pastores, os animais, enfim, todos, se curvam à beleza e leveza da criança, que é a criança em nós, como a se reportar ao que Freud dizia: “a criança é o pai do homem”.  Mais tarde, Jesus reforçaria isto ao dizer que “ninguém pode entrar no céu se não se tornar como este menino”.  É nosso “Eu” mais profundo, tocando o Sagrado, para nos lembrar que, felizes, livres, belos e generosos, só as crianças que fomos e, se as deixarmos pelo caminho, esquecida, perderemos a essência de nossa própria vida.  Assim, os reis se curvam diante da criança, para nos recordar que, soberana, apenas ela, a ser transfigurada na maturidade, entre páscoas e ressurreições que temos ao longo da vida, mas nunca vencida, nunca superada, pois ela é o eterno em nós, a gema do diamante que somos.
     E Jesus, ao contrário dos ícones sisudos e tristes com os quais às vezes o retratam, nos convida à alegria.  A célebre e imortal obra de Bach, “Jesus, alegria dos homens”, nos recorda disto. Seu primeiro “milagre” é numa festa, a converter água em vinho.  Mais tarde, na festa de páscoa que antecedeu sua morte, este vinho é convertido em seu sangue, a celebrar a união da terra com o céu, da vida e da morte, da dor e do prazer.  É a união dos opostos de que nos falava Jung, a harmonizar todo conflito interior e nos ensinar a estar em paz e plenos, na convivência com nossos conflitos.

     Jung acenou que não era fácil ser cristão, o que dificultava a vida psíquica dos ocidentais, pois Jesus é perfeição demais, difícil de imitar na prática. Um padrão muito superior, quase inatingível. Mas, apesar de todo o nosso materialismo, e toda a nossa ganância, de todos os nossos conflitos, é em nome dele que nos reuniremos com nossos entes mais queridos para celebrar algo que não sabemos muito bem o que é.  Apenas o nascimento de uma criança, que morreria mais tarde condenada à morte, mas que nos encheu de uma esperança eterna e irresistível e que talvez nos acene para o nossos mais altos destinos como pessoas, como indivíduos e como coletividade. Tudo isto é simbólico ou não, depende da fé de cada um, mas, seja como for, seja você ateu, muçulmano, judeu, umbandista, cristão, espírita ou nenhuma destas alternativas.  Seja você quem for, uma coisa é certa: você foi um dia criança e, sendo criança, você sonhou e imaginou, projetou no mundo sua esperança de felicidade. O Natal talvez seja apenas o momento de recordarmos desta criança que fomos, que ainda está lá no intemporal do inconsciente, e talvez queira lembrá-lo dos seus sonhos, das suas esperanças mais íntimas e secretas, a pedir de você hoje adulto, que de algum jeito possa atendê-la, não para que, ilusoriamente, a vida se torne fácil, mas simplesmente para que, fácil ou difícil, você a faça valer a pena. É tudo o que ela espera de você.  Em nome do CONBRAPSI: Feliz Natal!!