sábado, 7 de janeiro de 2017

Psicanálise hoje: faz sentido?

 

     Flávio Gonzalez: Psicanalista, Membro do Conselho Brasileiro de Psicanálise e Psicoterapias, Psicólogo, Teólogo, Mestrando em Aconselhamento e Autor de diversos Livros, entre os quais "Emprego Apoiado - Uma leitura Psicanalítica".  Está organizando, com a diretoria do CONBRAPSI, o Núcleo de Estudos Rubem Alves.   


     Inúmeras publicações existem questionando a validade da psicanálise em nosso tempo. Afinal, com tantos avanços na medicina, na psicologia mesma, faz ainda algum sentido falar em psicanálise?  A pressa é a marca do nosso tempo, assim como a praticidade, a busca de resultados objetivos e rápidos.  Assim, a neurologia, com seus amplos estudos de imagem, suas ressonâncias, suas respostas, vai configurando novas formas de tratamento, de intervenção. Uma nova medicação aqui, outra ali, uma nova “técnica” psicológica que reconstrua certos caminhos neuronais, refaça modelações e condicionamentos, desfaça pensamentos disfuncionais e, pronto, estamos curados!   Mas, a realidade não é bem esta. Lembro-me de minha falecida avó.  Depressiva e cheia de ansiedades, há uns quatro anos atrás ela me contou que estava tomando um remédio, um psicotrópico famoso.  Eu lhe perguntei - “mas, e então vó, melhorou?”.  Ela, na sua grande simplicidade, respondeu – “não muito, pois antes eu tinha muita vontade de chorar e chorava, mas agora eu sinto vontade, mas não consigo chorar e acabo me sentindo mal”.  Não vai aqui, de nossa parte, nenhuma restrição ou crítica à medicação ou mesmo outras diversas modalidades de terapias, inclusive as complementares: tudo isto pode e deve ser usado, com as indicações adequadas, feitas por profissionais competentes, que saibam o que estão fazendo, na medida do necessário. Entretanto, afirmamos categoricamente que nenhum destes recursos, por mais milagrosos que possam parecer, invalidam ou sequer substituem a psicanálise.  Esta, precisa evoluir sempre, claro, mas tem seu papel justo e definitivo junto à humanidade.
     Um “mito moderno” é, sem dúvida, a biologia, sobretudo no que tange às suas especializações mais complexas, a neurologia e a genética. Então, tudo volta, sem que percebamos, a ser reduzido e explicado pelas conexões cerebrais, pelos hormônios, a disfunção de alguma glândula com seus efeitos corticais etc.  Isto, porém, reedita a velha imagem do ser humano como máquina, o que é, de certo modo, negar nossa subjetividade e, principalmente a nossa “historicidade”.  Somos históricos sempre, já dizia o saudoso Hélio Pellegrino.  Por isto, sempre respondo que, se por um lado somos marcados pela nossa biologia, somos também, sem dúvida alguma, marcados pela nossa biografia.  Mais que marcados: somos nossa biografia.  Sejamos que formos, com o biótipo que tivermos e herdeiros de que herança genética for, uma coisa é certa: além disto, graças a isto, apesar disto ou por isto mesmo, temos uma história.  Sim, e nossa história passa pela biologia, mas passa pela História com seus aspectos geográficos, políticos, sociais, passa por todas as nossas relações mais íntimas e pessoais, passa por significados que atribuímos a cada trecho dela e por todas as escolhas que fizemos ou deixamos de fazer.  Enfim, temos, cada um de nós, não há como, uma história própria que é, precisamente, o terreno da psicanálise.  A biologia é parte desta história, não há dúvida, mas não é a história em si, pois esta foi tecida no terreno dos afetos, dos símbolos, dos sonhos, dos desejos, de tudo aquilo que nos constitui como sujeitos, como pessoas.  Digo sempre para meus eventuais alunos: enquanto tivermos história, haverá a psicanálise. Quando não tivermos mais história, a psicanálise acaba, mas também acaba a vida, pois esta é sempre biografia, nunca pura biologia, exceto se estivermos falando de vegetais. E digo sempre, de modo provocador: a psicanálise não faz sentido nenhum, mas busca o sentido que cada sujeito deu para si e para a própria história, ajudando-o a descobri-lo e, se for o caso, a refazê-lo. Nenhum remédio consegue fazer isto.  Como disse certa vez o velho Sartre, podemos curar uma neurose, mas nunca poderemos nos curar de nós mesmos.  É possível que um dia algum remédio cure definitivamente a depressão, a ansiedade e outros problemas humanos.  Quando este dia chegar, no entanto, cantaremos a canção do Arnaldo Antunes, “socorro não estou sentindo nada”, e buscaremos na psicanálise, enfim, um fio de humanidade que possa nos levar de volta ao centro de nós mesmo, pois é de lá, e apenas de lá, que é possível nos ligar ao outro, o que constitui o único sentido de nossas vidas.